terça-feira, 29 de julho de 2008

Lost in translation


Já toda a gente leu uma frase num livro ou uma legenda num filme que parece não fazer sentido. Precisamos de conhecer o original, e compreender a língua, para perceber o que foi realmente dito. Quem sabe inglês, por exemplo, está sempre a ler coisas nas legendas dos filmes que não combinam com o que está a ouvir.

Por vezes, a frase pura e simplesmente não faz sentido, porque o tradutor ou não conhecia a expressão ou não percebeu, e resolve inventar qualquer coisa. Alguns favoritos:
"Costumava fazer piqueniques em Londres."
(Estudava na politécnica de Londres – Devemos dar um desconto, polytechnic e pic-nic são de facto muito parecidos)
"Eu passava férias com o Capitão Tibe."
(Eu passava férias em Cap d’Antibes – Como sabemos, o Capitão Tibe é subordinado do General Motors, mas dá ordens ao Cabo Espichel)
"Larga essa revista."
(Larga o carregador – Ambos são magazine, mas a imagem era de um homem a introduzir um carregador novo na arma. O tradutor viu o filme?)
"Suspeitava-se do Arson."
(Suspeitava-se que tinha sido fogo posto - Aqui o tradutor criou uma nova personagem, Arson, que não volta a aparecer no livro)

Em todos os casos, os tradutores não sabiam do que estavam a falar e, por ignorância ou falta de profissionalismo, resolveram escrever qualquer coisa aproximada, nem que fosse só pelo som. Mas não é só nos filmes e literatura que as traduções são deficientes. Os media também são culpados.
Um dos grandes favoritos da história recente, a notória frase de Ahmadinejad, “Israel tem de ser apagado do mapa”, nunca foi dita por ele. O que ele afirmou foi: “Este regime de ocupação em Jerusalém deve desaparecer das páginas do tempo.”

Não é a mesma coisa, nem perto. Ainda menos se soubermos que estava a citar um discurso do Aiatola Khomeini, onde este afirmava que regimes como o do Xá, de Saddam Hussein ou o regime comunista da União Soviética parecem poderosos e invulneráveis mas acabam por desaparecer. Ahmadinejad limitou-se a juntar o regime sionista ao rol. Tal como Khomeini, ele não está a falar de destruir os países, está a falar de acabar com os governos, os sistemas políticos e uma ocupação injusta e contrária a todas as leis internacionais, menos a do mais forte.

No entanto, não há notícia sobre o presidente do Irão que não inclua essa referência, tantas vezes repetida que já se tornou como as alcunhas dos jogadores de boxe:
Mahmoud “Vamos destruir Israel” Ahmadinejad Vs O Mundo.

Ao contrário dos maus tradutores de filmes, livros e programas de tv, que só cometem o pecado de serem incompetentes, os media têm a responsabilidade de relatar a verdade.

Ouvi a citação de Ahmadinejad muitas vezes, e as condenações dos políticos ocidentais e israelitas ainda mais, antes de descobrir que a tradução era incorrecta. Para ouvir o que queriam que eu ouvisse, bastou-me ficar sentado no sofá. Para descobrir o que ele tinha realmente dito, tive de o procurar na internet.

No contexto actual de demonização do Irão, preparação indispensável a um eventual ataque, até que ponto é que estes erros de tradução são erros de facto? O Irão não só não tem capacidade para destruir Israel como não ameaça fazê-lo. Logo, há que tornar o Irão ameaçador para legitimizar qualquer intervenção.

O Irão e Israel são as coisas mais parecidas com uma democracia no Médio Oriente, um facto deprimente em si mesmo.
O Irão está muito longe da perfeição, mas é um paraíso se comparado com a monarquia absoluta de inspiração Wahabita da Arábia Saudita, esse grande aliado do Ocidente.
Israel só é impedido de ser um país normal pelos problemas causados por uma ocupação injusta, que está lentamente a corroer a alma do país.
Ambos cometem o pecado de serem governos teocráticos.

O que há de curioso no regime islamo-fascista, opressor de mulheres, patrocinador de terroristas, criador de programas de armas nucleares, etc, do Irão é que o Presidente, que não é quem tem mais autoridade, é eleito democraticamente. Como ganhou as eleições prometendo desenvolvimento económico, mais emprego e melhoria das condições de vida, e não cumpriu, é muito possível que deixe o cargo nas próximas eleições.

Não é preciso invadir o Irão para retirar este louco-perigoso-anti-sionista-negador-do-holocausto do poder. Basta esperar pelas próximas eleições. É como nos Estados Unidos.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Apologia da censura II




Imagens de corpos nus recortadas, censuradas, atiradas para cima de uma mesa numa desordem aparente. Imagens censuradas que só chamam mais a atenção para o que fica escondido. Palavras que aparecem sobre as imagens, como um graffiti carnal. Um bailado de corpos sem rosto, de faces sem nome, que tanto forma corações como se deforma em contorções.

Uma reflexão sobre a nossa obsessão com a celebridade, o culto do corpo, o medo do outro, as relações sem compromissos, a incapacidade de amar. Ou apenas uma maneira económica de fazer um video que nos prende como poucos. P.J. Harvey no seu mais sublime.

quinta-feira, 24 de julho de 2008

A Segunda Vinda


Há provavelmente mais muçulmanos do que judeus na América (as estatísticas variam com as intenções de quem as utiliza). Mas não vemos políticos americanos a correr atrás deste eleitorado. Antes pelo contrário: recentemente, membros da campanha de Obama retiraram discretamente algumas apoiantes muçulmanas das proximidades do seu candidato, não fosse o senador democrata aparecer na TV com algumas mulheres atrás dele de lenço na cabeça.

Há mais de 5 milhões de judeus nos Estados Unidos da América, menos de 2% da população. No entanto, esta minoria há muito que tem uma importância política totalmente desproporcionada em relação aos seus números. 

Há uma excelente razão para isto: a Segunda Vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Os judeus não acreditam na Segunda Vinda do Cristo, ainda estão há espera da primeira. 
Mas os evangelistas americanos acreditam, e acreditam que está para breve. Está tudo na Bíblia, se for lida de uma certa forma. Para que Jesus regresse, no entanto, há alguns pré-requisitos que é necessário cumprir.

É preciso, nomeadamente, que um estado Judeu seja fundado para que os judeus regressem à Terra Prometida. Já está, e chama-se Israel.
Depois, é preciso que nada de mal lhe aconteça. Também já está e chama-se política americana para o Médio Oriente, baseada num apoio total e incondicional de Israel, dê por onde der e por vezes contra os interesses dos próprios Estados Unidos.
Por último, é preciso guerra entre os árabes e os judeus, tal como eles acham que está profetizado na Bíblia. 

A maioria das pessoas fica horrorizada com o que se passa no Médio Oriente (ou já nem liga). Os evangelistas americanos vêm a mão do Senhor e cantam aleluias. Segundo a sua interpretação muito literal do Livro, está tudo a correr de acordo com o plano. O Armagedão está cada vez mais próximo.

Porque é que as confusões teológicas destes grupos são relevantes? Porque os evangelistas são mais de um quarto do eleitorado deste país de 300 milhões de habitantes. Nenhum candidato a presidente sonha poder ganhar as eleições indo contra as vontades e desejos deste grupo. 

Assim, uma das primeiras coisas que Obama e McCain fizeram depois de garantirem a nomeação pelos respectivos partidos foi prestar vassalagem pública ao AIPAC, o maior lobby pró-israelita americano. Cada um tentou exceder o outro nas suas declarações de eterna fidelidade e amor incondicional. 

Os pastores Cristãos Sionistas (é mesmo assim que alguns destes grupos se chamam) e as suas congregações ficaram satisfeitos por saber que nenhum dos dois vai atentar contra as suas visões apocalípticas. Segundo eles afirmam, a principal função dos Estados Unidos no mundo é defender a existência de Israel.

E não são só os candidatos a presidente. O eleitorado judeu é de facto importante em estados como Nova Iorque ou a Flórida, mas é muito difícil encontrar um senador que não seja incondicionalmente a favor de Israel. 
"Durante uma visita a Israel, Bush pergunta a Olmert se o seu país não gostaria de ser o 51º estado americano. O primeiro ministro diz que não, obrigado, porque passavam a ter só dois senadores." É uma anedota israelita.

E os judeus no meio disto tudo? Certamente que apreciam a influência que detêm sobre a única superpotência mundial. E a crença de muitos cristãos, especialmente protestantes anglo-saxónicos, de que os judeus deviam voltar a estabelecer-se na Terra Santa foi fundamental para o movimento sionista e para a formação do próprio estado de Israel. 

Mas serem as estrelas do filme que os evangelistas americanos criaram nas suas cabeças traz os seus problemas. É que, para a história ter o final esperado, os judeus vão ter que A) converter-se ao cristianismo ou B) morrer. Um estado judeu na bíblica Judeia e Samaria pode ter sido o primeiro passo, mas o seu desaparecimento ou conversão é fundamental para que a Segunda Vinda seja um sucesso. 

Os cristãos fundamentalistas afirmam gostar de tudo o que é hebraico, mas as suas crenças determinam que os judeus desapareçam da face da terra.

Com amigos destes, Israel nem precisava de inimigos.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Coração das trevas '08


Um albino é uma pessoa com uma condição hereditária caracterizada por uma deficiência parcial ou total de melanina nos olhos, cabelo e pele. Esta incapacidade de produzir melanina torna-o muito sensível ao sol, conferindo-lhe a palidez característica. Mas se perguntarmos a certos curandeiros da Tanzânia, ou aos seus clientes, ele é muito mais do que isso. 

Os albinos sempre foram vistos como diferentes, estranhos, o resultado de uma maldição na família. Mas agora são vistos de outra maneira. Os albinos tornaram-se uma fonte de rendimentos. 

Segundo alguns curandeiros, as diferentes partes do corpo de um albino trazem riqueza e prosperidade a quem tiver dinheiro para pagar o ritual. As pernas, por exemplo, garantem sucesso no sector mineiro. 

Em consequência, pelo menos 19 albinos foram mortos na Tanzânia desde Março de 2007, por criminosos que procuram obter partes dos seus corpos. 

Um grupo pode emboscar um albino à porta de casa com o propósito expresso de lhe cortar as pernas. Completado o pedido, deixam-no a esvair-se em sangue, levando para o curandeiro apenas os ingredientes que ele encomendou. A vítima, naturalmente, morre dos ferimentos. 

Mas não fica por aí. Afinal, ainda sobrou muita coisa. 

Para garantir que mais nenhuma parte do que era um ser humano seja levada, os familiares são obrigados a tomar precauções especiais, como despejar betão na campa, para dificultar a tarefa aos ladrões de túmulos. E são forçados a viver no terror de que sejam eles os próximos.

Calcula-se que haja cerca de 270 mil albinos a viver na Tanzânia. 
Enquanto houver pessoas que acreditam que o chifre de rinoceronte aumenta a potência sexual ou que as mãos de um albino tornam as redes de pesca mais produtivas, os curandeiros nunca vão ficar sem os seus ingredientes. 

Adenda: as pessoas calvas também têm os seus problemas na Tanzânia, sendo caçados pela sua língua, orgãos genitais e outros membros. Desconheço a finalidade exacta, mas talvez tenha a ver com a história de ser dos carecas que elas gostam mais. E haver cada vez menos rinocerontes.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Terrorista aos 90


A 26 de Junho de 2008, a menos de um mês do seu nonagésimo aniversário, Nelson Mandela deixou finalmente de ser um terrorista aos olhos do governo americano. 
É uma ocasião histórica: não é todos os dias que o Congresso dos Estados Unidos retira um dos estadistas mais admirados em todo o mundo da lista oficial de terrorismo.

Aparentemente, todo o tempo que Mandela passou a lutar contra o Apartheid, na prisão e fora dela, não passou de actividade terrorista. Exactamente como o governo sul-africano de minoria branca afirmava. 

Que o regime do apartheid rotulasse Madiba de terrorista não surpreende. Atribuir a classificação de organização terrorista à oposição, armada ou não, é uma prática tradicional, comum a ditadores e governos democraticamente eleitos.

O que surpreende é que uma luminária qualquer em Washington concordasse, e a coisa se tornasse oficial. Mas há uma explicação: o governo sul-africano podia ser muitas coisas, mas comunista não era uma delas. Os Estados Unidos não precisavam de mais.

Durante a Guerra Fria, todas as organizações ou indivíduos que combatiam ditaduras apoiadas pelos americanos eram perigosos terroristas de orientação comunista. E todos os movimentos que combatiam contra ditaduras comunistas ou suportadas pelos russos eram heróicos combatentes da liberdade. E vice versa.

O mundo era mais simples nos tempos da União Soviética.

Seria de esperar que as coisas mudassem para Mandela com o fim da guerra fria, do apartheid, de 27 anos de prisão, as primeiras eleições livres na África do Sul, o Nobel da Paz, etc. Mas não. A inércia da função pública, aparentemente,  é igual em todo o lado.

Mesmo depois de Mandela ser eleito Presidente, continuou a ser um terrorista empedernido. 

Quando visitou a América como presidente da África do Sul, nos anos 90, podia ter sido preso e levado a tribunal. Ou ninguém reparou ou o bom senso prevaleceu - Mandela não foi preso. Mas continuou na lista negra, até agora.

O que faz reflectir um pouco. 

Se alguém do estatuto de Mandela só se livra da condição de terrorista porque estava quase a celebrar os 90 anos de idade e já começava a parecer mal, quantas pessoas por esse mundo fora, que lutam por uma vida melhor, mais direitos, liberdade, ou o que quer que seja, serão também terroristas sem nunca o terem sido? 

As pessoas que combatem pela liberdade são o terror dos ditadores. E o embaraço dos impérios.

terça-feira, 15 de julho de 2008

Porajmos


Os ciganos não são de confiança porque são uma cambada de ciganos. Os ciganos são vigaristas, traficantes e criminosos porque são ciganos. Até podemos gostar dos Gypsy Kings ou do Paco de Lucia, mas gostar de ciganos, isso não. 

Para um cigano se tornar criminoso basta ser cigano. Para as outras pessoas, é indispensável uma infância difícil e uma sociedade pouco solidária. Os crimes dos ciganos são motivados pelos genes, os das outras pessoas pelas dificuldades económicas que atravessam. 

Isto não é um fenómeno português: por toda a Europa, ou onde quer que vivam, os ciganos são discriminados ou activamente perseguidos, em maior ou menor grau. 

Na Europa de leste, os governos diminuem os números da sua população nas estatísticas, não vão eles ficar de repente com ideias de que são uma minoria importante e com direitos. 

Na Itália, o governo quer criar ficheiros sobre toda a população cigana, mesmo as crianças, presume-se que para facilitar o trabalho da polícia quando as ditas crianças embarcarem, como é inevitável, numa vida de crime. 

Em Portugal, os acontecimentos de Loures vieram lembrar a toda a gente que os ciganos não são como nós, cruzes, credo, e não passam de uns rufias com muitos primos que aparecem sabe-se lá de onde de arma na mão sempre que há problemas. 

A mulher cigana que morreu à beira da estrada poucos dias, morreu por culpa dela e do marido. Porque eram ciganos e os polícias não iam acreditar em ciganos que, como toda a gente sabe, não passam de aldrabões, capaz de inventar qualquer coisa para se safar. "A mulher está doente? 'Tá-se mesmo a ver." Viu-se.

O que me leva ao título. 
Poucas pessoas conhecem a palavra Porajmos. Traduzida, quer dizer qualquer coisa como "a devoração".  É o nome que os ciganos dão ao holocausto. Não o dos judeus, que toda a gente conhece bem, mas o dos ciganos, que também eram considerados untermenschen pela raça superior ariana.

Calcula-se que 220.000 a 700.000 ciganos tenham sido assassinados pela Alemanha nazi, tanto em campos de extermínio como às mãos dos Einsatzgruppen que devassaram a Europa oriental, devorando comunidades inteiras. O simples facto de ninguém saber ao certo quantos morreram diz muito sobre este holocausto esquecido. 

Os ciganos eram (e são) alvos fáceis: são diferentes e vivem em grupos unidos. Fome doença e trabalhos forçados foram as primeiras armas. Os campos de extermínio vieram depois. 

Em Auschwitz-Birkenau, os alemães criaram uma secção separada para ciganos. Quando estes chegavam, vindos de toda a Europa, nem os tentavam separar, como costumavam fazer com outros grupos: tinham menos trabalho mantendo os homens, mulheres e crianças todos juntos. A maioria morreu nas câmaras de gás, pouco depois de chegar.

Já vi documentários inteiros sobre o Holocausto onde os ciganos são referidos apenas de passagem, muitas vezes numa única frase. Como se as suas mortes fossem menos importantes que as dos outros. 

Há judeus sovinas, gananciosos e usurários? Certamente. Mas sugerir que todos os judeus são assim é anti-semitismo. 
Há ciganos criminosos, traficantes, mendigos e mentirosos? Claro que sim, e os atiradores da Quinta da Fonte não passam de rufias. Mas não é preciso generalizar. 

Porquê a diferença de tratamento? Porque a má consciência europeia só sente vergonha, embaraço e arrependimento em relação a um dos povos. É um problema de ralação pública.

Os ciganos continuam a ser um povo sem país, uma minoria à mercê dos governos das terras por onde passam. Um povo a assimilar, para deixar de ser tão diferente. A sedentarizar, para ser mais fácil de controlar. A hostilizar, recear e ostracizar porque, afinal, não passam de ciganos. 

Quando ignoramos o racismo do presente, estamos condenados a repetir os crimes do passado?

quarta-feira, 9 de julho de 2008

G-18


Os G-8 estão reunidos, mais uma vez, para falar dos problemas do mundo e prometer soluções. Desta vez é no Japão e o tema principal é a crise alimentar global. Como é habitual neste tipo de reuniões, o público normalmente só vê as demonstrações públicas de unidade, e todas as decisões de consequência são tratadas debaixo da mesa. 

Mas este G-8 tornou-se notório logo no primeiro dia pelo que se passou em cima da mesa.

Depois de discutirem a crise alimentar, de apelarem a que as pessoas desperdicem menos e de exprimirem inequivocamente a sua preocupação pela situação, os G-8 dispensaram os líderes africanos (os "token black guy" como dizem nos filmes), que estão lá para fazer figura de corpo presente mas não têm de ficar para jantar.

Uma vez sossegados em companhia do mais selecto Primeiro Mundo, embarcaram numa refeição pantagruélica de 18 pratos, à qual não podia faltar o proverbial caviar e coisas mais exóticas como enguia grelhada enrolada em tiras de raiz de gobo. 
Tudo regado com champagne, saké e 4 vinhos diferentes, e culminando numa sobremesa criada especialmente para a ocasião, baptizada de G-8 Fantasy. A sério.

Ninguém espera que os políticos passem fome, ou que os líderes dos países mais ricos deste mundo se tratem mal ou privem de alguma coisa. 

O que se espera dos políticos, e talvez já seja a única coisa, é que tenham sentido do que é ou não apropriado. Ou que compreendam que sentarem-se à volta desta mesa depois de falarem da fome no mundo é uma obscenidade. 

Dirigentes, assistentes, assessores, consultores, organizadores: ninguém parece ter achado que era má ideia antes do jantar começar. Só perceberam a sua hipocrisia e/ou incompetência quando se viram nas bocas do mundo.

Os organizadores japoneses pensaram em tudo para que não houvesse problemas com activistas anti-globalização, falhas de segurança ou qualquer dos problemas que costumam envolver estas cimeiras. Só se esqueceram de esconder os seus convidados VIP.

Quando os políticos já não se preocupam sequer com a cara que mostram ao mundo, o mundo está em sérios apuros.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

A morte da senhora Green


A senhora Green está morta. Sabemos isso porque apareceu em todos os canais de televisão e sites de informação do mundo. Quem era a senhora Green? Não interessa. O que importa é como morreu.

Todos os dias morrem pessoas e ninguém lhes liga. O que torna especial a morte de Esmin Green, 49 anos, é que morreu em frente a uma câmara de video, na sala de espera da ala psiquiátrica de um Hospital, em Nova Iorque. 

O que fez notícia não foi haver imagens da morte. É que não é só a senhora Green quem aparece no video de segurança.  

Vemos um guarda que chega, olha para ela, coloca a mão na anca, encosta-se à parede, olha mais um pouco e vai-se embora. Nas cadeiras da sala de espera, outros aguardam a sua vez, pacientes, sem esboçarem um gesto para ajudar. Outro segurança aparece, rolando na sua cadeira de escritório. Também ele olha para a senhora Green, estendida no chão, durante algum tempo, até voltar a rolar para o seu posto. 

Isto continua por muito tempo, demasiado tempo. 

Depois de 24 horas à espera de ser atendida, e de quase uma hora caída no chão, o corpo da senhora Green desistiu e parou de funcionar. Só então as coisas começaram a funcionar à sua volta, como num episódio do E.R.

Mas o assunto não ficou por aqui. Para encobrir a sua incompetência e/ou falta de humanidade, as horas  dos registos efectuados sobre a ocorrência foram alteradas para contarem uma história diferente. Os irresponsáveis do hospital esqueceram essa maravilhosa invenção que é o time-code no canto das imagens video. 

7 já foram despedidos ou estão em investigação: a justiça é sempre mais rápida quando tem uma câmara apontada à cabeça. O hospital já emitiu o comunicado da praxe, a dizer que as acções dos seus funcionários não reflectem a compaixão que é a sua razão de ser e da qual tanto se orgulham. Como se um hospital não fosse as pessoas que lá trabalham. 

Faz lembrar um excelente e muito deprimente filme romeno. Aconteceu na América, mas podia ter acontecido em qualquer outro lado.

Agora toda a gente liga à morte da senhora Green. Se alguém tivesse ligado à sua vida, ela continuaria a ser uma desconhecida para todos menos os seus amigos e familiares. Mas ao menos estaria viva.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Apologia da censura





Se não houvesse censura, este video não tinha graça nenhuma. Um exemplo brilhante de como se pode explorar os códigos moralistas de uma forma inteligente e divertida. A fotografia, tipo filme porno nórdico dos anos 70, faz-nos logo entrar no espírito da coisa. Mas é a utilização das proverbiais barras negras do censor que torna o video excepcional. A música também não é má. Para ver, com pudor e com preconceitos.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Made in China


Depois do papel, da pólvora, da tinta da china e do crepe de legumes, a mais recente invenção chinesa a ganhar aceitação no ocidente é a tortura.
Se considerava os métodos de interrogação utilizados pelos americanos em Guantanamo e noutros locais como imorais e indignos de uma nação democrática, agora já sabe porquê.

Foi revelado que o manual de interrogação usado na guerra contra o terror é uma cópia exacta dum relatório da Força Aérea Americana sobre os métodos de interrogação utilizados pela China comunista durante a guerra da Coreia, para arrancar confissões aos prisioneiros americanos. 
A única diferença é que, na época, eram denunciados como tortura e agora são uma ferramenta indispensável para vencer a Al Qaeda. Quando é que a tortura não é tortura? Quando somos nós a praticá-la. 

Mas a maior preocupação aqui nem sequer é a moral. 

Os chineses não estavam interessados em informações sobre o inimigo.
Os soldados americanos que eram "interrogados" segundo estes métodos confessavam de tudo um pouco, desde que envolvesse alguma forma de atrocidade. As autoridades chinesas filmavam estas falsas confissões para poderem mostrar ao mundo que o que eles diziam dos criminosos capitalistas americanos era mesmo verdadeiro.

Agora, os americanos usam os mesmos métodos para obterem informações sobre práticas terroristas a partir dos seus cativos. Com os mesmos métodos vão, certamente, obter os mesmos resultados. 

A maior parte das pessoas que é torturada confessa seja o que for. Não porque seja necessariamente verdade, mas porque é o que o torturador quer ouvir. E é a única forma de fazer a tortura parar. 

O que é mais preocupante em toda esta história é que, durante anos, políticos e generais andaram a tomar decisões baseadas nestas "informações". 

Ao menos os chineses sabiam que as confissões eram propaganda. Os americanos pensavam que era informação.