segunda-feira, 6 de outubro de 2008

A nova desordem mundial


Quando Bush, pai, proclamou a chegada de uma Nova Ordem Mundial, o fim da história foi anunciado. O capitalismo e a democracia eram os destinos inevitáveis da humanidade, e da América viria a liderança benévola e esclarecida que nos mostraria o caminho.

Durou pouco.

A Somália ia ser a primeira amostra da Nova Ordem Mundial. O país estava devastado pela guerra tribal, as tribos estavam dizimadas pela seca, senhores da guerra roubavam a comida e medicamentos às agências humanitárias, tinha deixado de haver um governo funcional.
A expressão “estado falhado” era usada para definir o problema, mas o que a Somália tinha antes era um estado totalitário, e todos os estados totalitários merecem falhar. O problema é o que surge depois.

Na Somália, a solução possível eram as tribos. Mas a proliferação de armas veio romper as alianças e equilíbrios tradicionais do sistema tribal e o vazio foi preenchido por senhores da guerra que não tinham poder para controlar mais do que alguns bairros ou aldeias. 

A América ia agora liderar uma força de paz internacional para libertar os somalis de si mesmos e levar comida a todos os necessitados. Não havia qualquer interesse americano envolvido. A Somália não tem petróleo e não tinha terroristas. A operação era a primeira demonstração prática de como a Nova Ordem Mundial ia fazer do poder militar americano uma força para o bem, a paz e a democracia em todo o mundo.

Algumas tentativas de assassinar senhores da guerra somalis depois, os americanos ficaram chocados ao verem os corpos de alguns dos seus soldados a ser arrastados pelas ruas, mutilados e queimados. Aqueles selvagens não sabiam que eles estavam lá para ajudar? Os americanos foram embora pouco depois.

Desde então, a única coisa mais ou menos parecida com um governo capaz de ultrapassar as diferenças tribais foi demolida por aviões americanos e tanques etíopes. Porque era um governo de inspiração islâmica, logo, terrorista.

A ausência de um estado teve outro efeito para além de tornar a vida dos somalis difícil.
Nos anos que se seguiram à operação de paz, deixou de haver qualquer forma de controlo sobre as águas territoriais da Somália. O resultado foi uma espécie de faroeste aquático.
Barcos de pesca vieram de todo o mundo civilizado para pescar sem limites, controlo ou moderação. E sem terem de negociar licenças. Navios transportando resíduos tóxicos, vindos de todo o mundo industrializado, largavam o seu lixo ao largo, sem terem de pagar multas ou serem presos. Tudo o que se pode fazer ao mar mas não se deve foi feito.

Os efeitos na saúde das populações locais já se começaram a fazer sentir. A sua reacção também.

Os piratas que aparecem tanto nas notícias começaram por ser (segundo os próprios) a guarda costeira que o país já não tinha. Atacavam os arrastões industriais que pilhavam as suas águas, capturavam as tripulações que despejavam materiais tóxicos e faziam os criminosos que os enviavam para a região pensar duas vezes: será que ainda compensa?

O sucesso trouxe a imitação. Algumas estimativas colocam o número destes piratas modernos em cerca de 30 000. Os ataques também se diversificaram, passando a atingir barcos de cruzeiro e navios de carga inocentes numa das vias marítimas mais frequentadas do mundo. O que começou como “guarda costeira”, há muito que se tornou num negócio de captura e resgate muito lucrativo. O Golfo de Aden são as novas Caraíbas.

Como toda a gente que já foi criança, sempre tive um fraco por piratas. Ver um barquinho com motor fora de borda a tomar de assalto um enorme navio de carga moderno suscita um misto de admiração, incredulidade e espanto. Sim, são criminosos. Mas os piratas das Caraíbas também eram, e bem piores.
E gosto da ironia de ter sido a Nova Ordem Mundial, em larga medida, a criar a desordem que está a devolver protagonismo à pirataria.

Isto ainda dá em filme. Só falta inventar maneira de meter um aventureiro americano branco (um cruzamento de Tarzan com Jack Sparrow) a liderar um bando de terríveis piratas somalis (com um coração de ouro) contra terroristas islâmicos (porque sim) para ter um sucesso de bilheteira. 

Io-ho-ho e uma garrafa de cocktail molotov.

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